Isso parece alguma coisa que você já viu. Mas
trata-se de um mercado diferente: o da compra e venda de tulipas, que
“floresceu” na Holanda do século XVII. Essas flores caíram no gosto dos
endinheirados da Europa logo que foram trazidas da Turquia. E os holandeses,
que sabiam fazer dinheiro tão bem quanto faziam moinhos, começaram a plantá-las
a rodo para abastecer esse povo.
Aí apareceu um elemento surpresa nessa
história: um vírus. Quando ele contaminava uma tulipa, deixava a flor fraquinha
e danificava o pigmento dela. Péssimo para a planta, ótimo para os humanos: o
que era um dano para o vegetal deixava a flor mais bonita, com listras brancas,
leitosas, entremeando o pigmento da flor. Esse vírus, porém, só atacava as
plantas de vez em quando, o que tornava essa variedade um tipo raro, exclusivo.
Tão exclusivo que ganhou um nome pomposo, Semper Augustus, e um preço
estrondoso. Em 1624, um botão custava, em florins holandeses, o mesmo que uma
casa em Amsterdã – ou, para ficar só nos artigos de nome pomposo e preço
estrondoso, valia o mesmo que um Rolex Daytona de ouro vale hoje: um
apartamento (R$ 200 mil). Desse jeito, a Semper Augustus logo deixou de ser um
mero luxo para virar simplesmente um luxo. Seu preço alto também puxou para
cima a cotação das outras tulipas – a mera existência de um Rolex de R$ 200 mil
faz um de R$ 20 mil parecer barato, certo? Então. Com as tulipas ordinárias foi
a mesma coisa. Bastava ser tulipa que já estava bom: não faltaria gente a fim
de pagar caro por qualquer uma.
Os floristas só faziam negócios na primavera,
quando os bulbos (as raízes das quais nascem as tulipas) floresciam. Mas,
conforme os preços foram aumentando, isso deixou de fazer sentido. Se você
fosse um florista e precisasse de dinheiro no meio do inverno, meses antes de
ter como vender as plantas, não teria problemas para levantar capital. Era só
vender o próprio bulbo sem a flor e deixar o cliente esperando a tulipa surgir.
Um mercado novo foi nascendo com isso. Especuladores passaram a comprar bulbos
aos montes na esperança de revender mais caro quando as flores dessem as caras.
Convenhamos, um investimento bem esperto, já que os preços não paravam de
subir. Na verdade, os especuladores nem precisavam levar o bulbo para casa.
Ficavam só com um contrato (um “título”, no jargão financeiro) que lhes dava
direito ao dinheiro que a flor rendesse mais tarde. Não demorou, e passaram a
comercializar os próprios contratos. Quem tivesse pago 1.200 florins 1 por um
desses títulos, esperando que o bulbo subisse de preço até a primavera, às
vezes preferia vender a algum interessado por 1.300 e embolsar o lucro na hora
a ficar esperando. Esse outro sujeito podia encontrar alguém a fim de pagar
1.400 e vender de uma vez, levando 100 florins para casa sem fazer força.
A
coisa era tão tiro certo que os mais espertos começaram a fazer um malabarismo
financeiro: pegar, digamos, 1.400 florins emprestados para comprar o bulbo e
vendê-lo no mesmo dia por 1.500. Isso é mais do que dinheiro fácil. É lucrar
sem ter investido nada – coisa que os especuladores chamam de “alavancagem”.
Um holandês qualquer que acordasse sem um
tostão no bolso podia fazer o empréstimo de manhã, comprar a tulipa ao
meio-dia, vender mais caro à tarde, pagar o que devia com juros e ir dormir com
o lucro. Dava para viver disso, até. E ainda dá. Tanto que os Bancos fazem
dinheiro exatamente assim até hoje. Eles pegam emprestado pelo menos o triplo
do que têm e usam o dinheiro para investir. Depois pagam tudo e vão dormir com
o lucro. O Lehman Brothers, maior Banco de investimentos dos EUA até 2008,
chegava a tomar empréstimos de US$ 30 bilhões para cada US$ 1 bilhão que tinha
nas mãos. É como se alguém que ganha R$ 5 mil por mês hoje pegasse empréstimos
de R$ 2 milhões todo ano. Pagar tudo isso e ir dormir mais rico não é para
qualquer um – nem para o Lehman, que faliu, levando a economia mundial junto.
Mas essa é outra história.
A especulação com os bulbos de tulipa
crescia, e o preço deles ia na mesma toada. No auge do boom, em 1636, a Semper
Augustus subiu 300%, de 2 mil para 6 mil florins. Com as flores menos caras,
foi mais ainda. A tulipa do tipo Gouda, mais comum, subiu de 20 para 225
florins – mais de 1.125%.
O mercado das tulipas tinha pegado fogo: se você
adquiria um título de bulbo, pelo preço que fosse, sempre aparecia alguém para
comprá-lo por um valor maior. Só que fogo não é eterno, posto que é chama. “Mas que seja infinito enquanto dure”,
torciam os especuladores. Não foi. Esse mercado só se sustentaria se os preços
continuassem subindo para sempre. Mas os valores ali já não tinham mais nada a
ver com a demanda pelas flores como artigos de luxo. Não havia tantos nobres
dispostos a gastar o preço de uma mansão numa florzinha para mostrar aos amigos.
A quantidade de gente assim é um recurso finito.
Àquela altura, não havia mais um consumidor
final para valer. As pessoas só compravam os títulos por valores extorsivos na
esperança de que surgisse alguém “mais
otário” lá na frente disposto a pagar mais ainda por eles. Mas otários
também são um recurso finito.
Uma hora começou a faltar compradores. Para
piorar, descobriram um monte de fraudes: floristas estavam vendendo mais
contratos do que a quantidade de bulbos que tinham em estoque. Era como
imprimir dinheiro falso. Outra: ninguém sabia que o responsável pela existência
da Semper Augustus era um vírus (nem se fazia ideia do que era um vírus, já que
a vida microscópica era desconhecida na época). Se o vírus não infectasse o
bulbo, nascia uma tulipa normal. E o investidor via que tinha comprado gato por
lebre.
Quando tudo isso veio à tona, a desconfiança
reinou. E o mercado minguou. De vez. As ações da Vale subiram 200% em 3 anos. A
tulipa mais valiosa da Holanda no século XVII também. Quem tinha vendido casa e
carruagem para investir no dinheiro fácil das tulipas se viu com as calças na
mão de uma hora para a outra. Os contratos tinham virado “títulos podres”, como
dizem os economistas. Não valiam mais nada. O governo precisou intervir,
perdoando dívidas de pessoas falidas. E a economia demoraria anos para voltar
ao normal.
Para qualquer um que acompanhou o que
aconteceu com a economia antes, durante e depois da crise de 2008, tudo isso é
familiar. No mundo dos investimentos, os primeiros anos do século XXI foram tão
eufóricos como a época da mania das tulipas. Inclusive boa parte das ações
subiu tanto quanto as flores de 300 anos atrás. Sem exagero, nos três anos
anteriores à crise, as da Vale aumentaram quase tanto quanto a Semper Augustus
nos três anos de pico da bolha holandesa: 200%. As da Gerdau foram no mesmo
pique das tulipas Gouda: 1.000%. E a onda não afetou só quem opera diretamente
na bolsa. As 312 mil pessoas que optaram por deixar uma parte de seus fundos de
garantia em ações da Petrobras quando o governo criou esse programa, em 2000,
viram seu dinheiro dar cria. Quem separou R$ 50 mil do FGTS para investir
nisso, por exemplo, chegou a ter mais de R$ 500 mil na conta em 2008 – e
fazendo menos esforço do que se tivesse ganhado esse dinheiro no Big Brother;
ou na Holanda do século XVII. A diferença é que esse não foi um jogo entre
malandros e otários. Os lucros dessas empresas estavam subindo no mesmo ritmo
que o preço das ações – às vezes até mais rápido. Isso deixa tudo mais concreto.
Se você tem uma ação da Vale, por exemplo,
significa que é dono de 0,2 bilionésimo da empresa. Como proprietário de uma
parte da mineradora, você tem direito a um pedaço dos lucros dela, os “dividendos”, no jargão. E esse dinheiro
pinga na sua conta de tempos em tempos. É para isso que serve uma ação: pagar
dividendos. Se os lucros estão altos, o dinheiro que entra para você também é
alto. Ter esses papéis nas mãos é um bom negócio quando a empresa é lucrativa.
Tão bom que outras pessoas vão querer comprá-los de você para ficar com o
direito de receber um naco dos lucros da companhia. Aí é a lei da oferta e da
procura: se muita gente está interessada nelas, o preço sobe. E você pode
vender na bolsa por mais do que pagou. Básico. É para isso também que serve uma
ação – lucrar sobre as expectativas dos outros.
Quem compra, em tese, é um sujeito
interessado em ficar com o papel para que a grana dos dividendos caia na conta
dele. Mas, como tem muita gente nesse mercado, na prática o comprador típico é
alguém que só espera vender a ação por um preço maior no futuro, igual ao
mercado de tulipas.
Os ganhos podem ser tão grandes entre a
compra e a venda de uma ação que, na prática, a bolsa gira em torno disso.
Quase todo mundo que compra papéis o faz na esperança de vendê-los por mais
dinheiro um dia. E os dividendos acabam vistos como meros adicionais, só um
dinheirinho que chega de vez em quando. O que vale mesmo é a expectativa de vender
os papéis por um valor duas, três, dez vezes maior. Mas isso é uma inversão de
valores que só atrapalha na hora de entender a lógica do mercado acionário.
Para começar, o que faz o preço de uma ação
subir? O óbvio: quanto mais pessoas estiverem interessadas no papel, mais caro
ele vai ficar no mercado. Normal. Mas o que faz com que muita gente decida
comprar ações de alguma empresa em especial, levando o preço dos papéis lá para
cima? O potencial de lucros dessa empresa. Quanto mais a companhia faturar,
maior será a capacidade de ela pagar dividendos polpudos. Ou seja, os
dividendos não são meros extras. Eles formam a essência do mercado financeiro.
Se existe a expectativa de que uma empresa
vai dar mais lucros, de que ela vai pagar dividendos melhores lá na frente,
mais investidores correrão para as ações dela. E o preço vai subir. Mas tem um
problema aí: expectativa é só expectativa. Ninguém tem como dizer se uma
empresa vai dar mais ou menos lucro no futuro. E, se ela começar a viver no
prejuízo e acabar falindo, o destino das ações será o mesmo dos títulos de
tulipas: não valer mais nada.
É por causa dessa incerteza que o mercado
financeiro está cheio de analistas pagos para estudar a saúde financeira das
empresas. Eles fuçam os balanços e escarafuncham o mercado em busca de
quaisquer indícios sobre a capacidade de uma companhia continuar dando lucro.
Mas não é o suficiente. Por exemplo, você compraria ações de uma empresa que
aumentou seu faturamento de US$ 13 bilhões para US$ 100 bilhões em cinco anos?
Para completar, imagine que essa mesma companhia ainda afirmasse por A mais B
que iria dobrar esses US$ 100 bilhões logo ali, no ano seguinte. Adicione o
fato de que ela já era tão grande e aparentemente segura como uma Vale da vida.
Não comprar ações de uma empresa dessas seria
como rasgar dinheiro. E essa companhia existiu: era a Enron, a maior companhia
de energia elétrica dos EUA no fim do século XX. Depois de quase multiplicar
seu faturamento por dez, ela foi para a confortável posição de segunda companhia
que mais faturava no mundo, atrás apenas da Exxon Mobil, a maior petroleira da
Terra. Não podia haver investimento mais seguro. Era a empresa responsável por
iluminar boa parte do território da maior economia do mundo. Para ela deixar de
ganhar, só se os americanos abdicassem da eletricidade para viver sob luz de
velas. Por isso mesmo, as companhias de energia elétrica geralmente são
garantia de um fluxo constante de dividendos. Um negócio quase sem risco. Tanto
que, em épocas de vacas magras, muita gente corre para as ações delas –
enquanto a Bovespa derretia na crise de 2008, por exemplo, os papéis de várias
empresas dessa área ficaram imunes. Mas claro: se fosse só por isso, todo mundo
compraria apenas ações da companhia de energia elétrica. Mas tem outro ponto.
Se, por um lado, essas ações garantem dividendos faça chuva ou faça sol na
economia, por outro, elas dificilmente sobem grande coisa.
O potencial de lucro dessas empresas está
restrito ao consumo de energia das pessoas. E isso nunca dá grandes saltos de
uma hora para a outra. Então, as expectativas de lucro nunca batem no teto.
Ficam sempre ali, numa zona morna. E o preço das ações delas nunca sobe um
absurdo do dia para a noite.
Se você tem papéis da Petrobras, por exemplo,
e ela anuncia que o pré-sal tem o dobro do petróleo que estava previsto, o
potencial de lucro dela vai para a estratosfera, e o preço das ações sobe
junto. Com uma empresa de energia elétrica é virtualmente impossível acontecer
algo assim. E é isso o que torna o caso da Enron especial. Se uma elétrica das
grandes como ela começa a apresentar lucros absurdos, é o mundo perfeito: uma
ação com um potencial enorme de subir e que não tem como descer. Era bom demais
para ser verdade. Mas era verdade. Aí não deu outra: as ações dispararam.
Para variar, quase naquele ritmo da Semper
Augustus, a rainha das tulipas: 200% em três anos – entre 1999 e 2001, a ação
da Enron foi de US$ 30,00 para US$ 90,00. Bom para os investidores que
compraram essas ações na bolsa; melhor ainda para os executivos da Enron. Eles
ganhavam toneladas desses papéis de graça, como parte de seus bônus anuais. Um
prêmio merecido, diga-se, se você levar em conta que a Enron recebeu o Prêmio
de Empresa mais Inovadora da América, da revista Fortune, por seis anos consecutivos.
Depois que o preço dos papéis triplicou,
alguns executivos fizeram o que qualquer um faria: venderam as centenas de
milhares de ações que tinham ganho de bônus, embolsaram o lucro todo e saíram
para curtir a vida. Um deles foi Lou Pai, um americano de origem chinesa. Aos
52 anos, ele controlava uma das divisões da Enron e resolveu se aposentar. Lou
conseguiu US$ 268 milhões numa tacada só e foi viver tranquilo numa fazenda de
310 km2 no Colorado – a segunda maior propriedade daquele Estado. Também tinha
uma menorzinha, no Texas, para abrigar seu haras. Um fim de carreira mais do
que feliz. Só que a história estava longe de acabar.
Para quem tinha comprado ações da Enron, ela
estava apenas começando. Pouco mais de um ano depois de o valor de cada ação
ter chegado a US$ 90,00, a Enron estava falida. E quem tinha apostado suas
economias nela também. Perda total. Um investimento que deveria ser à prova de
risco − e que já tinha enriquecido muita gente − se mostrava furado. O que
aconteceu? Um crime. Os executivos da empresa estavam mentindo sobre os lucros.
Eles colocavam valores falsos nos balanços para garantir seus próprios lucros,
na forma de bônus pelo bom desempenho da companhia. Uma hora, porém, as
autoridades que fiscalizam empresas com ações na bolsa acabaram descobrindo as
fraudes.
Refizeram, então, os balanços e constataram
que a Enron estava dando prejuízo. A notícia se espalhou e as ações despencaram
para perto de zero. E em questão de meses foram a zero mesmo: a Enron entrou
com um pedido de falência. A tulipa estava morta. Esse foi um caso extremo em
que uma mentira estava por trás da escalada nos preços das ações. E que
terminou com a empresa fechando as portas.
Mas o mercado vive situações parecidas o
tempo todo. Não precisa haver uma fraude para que uma ação suba a um valor
muito maior do que deveria. Basta que as expectativas sobre os lucros que ela
possa dar no futuro sejam exageradas.
Artigo fantástico, devidamente apreciado. Uma verdadeira aula. Obrigado!
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